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Especialista diz que no Brasil o crime ambiental sempre compensa

Advogado Marcellus Ferreira Pinto diz que só quebra do monopólio da Vale porá fim à série de crimes como os provocados pelos arrombamentos das represas de Minas

Notícia publicada no Blog José Nêumanne, Estadão.

14 Fevereiro 2019 | 19h34

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macellus ferreira pinto

Marcellus: “Estado brasileiro é omisso para punir e para assegurar a cidadãos direitos constitucionais como saúde, segurança, educação”. Foto: Acervo pessoal

 

 

Ferreira Pinto, consultor do Centro de Cooperação Industrial Internacional (CIIC) em Moscou, acha que, “infelizmente, há uma percepção já arrigada na sociedade brasileira de que as coisas no País não funcionam, ou seja, nem as repetidas tragédias são capazes de nos ensinar algo de positivo. Ao contrário, a cada nova catástrofe, o que parece ficar claro é que há um limite de conduta negligente a ser superado. Por exemplo, se consigo dirigir embriagado às segundas-feiras, quando a fiscalização é mais frouxa, posso tentar fazê-lo também às terças e quartas. Esse tipo de conduta decorre da absoluta certeza de que, no campo das probabilidades, a possibilidade de ser apanhado e, sendo, de ser punido são ínfimas, para não dizer nulas”. Na edição desta semana da série Nêumanne Entrevista,neste blog, ele considera fundamental, para prevenir desastres como os de Brumadinho e Mariana, que a Vale enfrente concorrência de outras empresas gigantes na área de mineração que atuam em países onde não se repetem como aqui os episódios de 2015 e 2019. E deu o exemplo do Canadá, onde, em vez de a empresa se fiscalizar, como aqui, as concorrentes o fazem em seu lugar, o que evita esse ambiente que permite que o responsável pela barragem de Mariana seja encontrado depois administrando Brumadinho.

Marcellus Ferreira Pinto, capixaba (nasceu em Vitória, Espírito Santo) em 23 de fevereiro, já foi guia de turismo, morou nos EUA e no Canadá, ama vinhos, culinária, viagens e mergulho autônomo. É advogado, pós-graduado em Direito Eleitoral e mestre em Direito Constitucional, ex-professor da Faculdade de Direito de Vitória (FDV) e de cursos preparatórios para concursos. Instrutor de Direito Eleitoral da Escola Superior de Advocacia (ESA/OAB-ES), consultor do Centro de Cooperação Industrial Internacional (CIIC) da Unido, Agência de Desenvolvimento Industrial da ONU em Moscou.

Nêumanne entrevista Marcellus Ferreira Pinto

Nêumanne – O jornal O Globo fez um levantamento, publicado na segunda-feira 11 de fevereiro, dando conta de que nada foi feito para punir ou multar nenhum agente privado ou público apontado por ter sido negligente em dez catástrofes de repercussão nacional em dez anos, entre 2007 e 2017, que vão da queda de um avião até o desabamento de um prédio ocupado por invasores sem-teto no Centro de São Paulo. Por que isso aconteceu?

Marcellus – Isso aconteceu por uma única razão: ineficiência do Estado, que gera impunidade. Infelizmente, há uma percepção já arrigada na sociedade brasileira de que as coisas no País não funcionam, ou seja, nem as repetidas tragédias são capazes de nos ensinar algo de positivo. Ao contrário, a cada nova catástrofe, o que parece ficar claro é que há um limite de conduta negligente a ser superado. Por exemplo, se consigo dirigir embriagado às segundas-feiras, quando a fiscalização é mais frouxa, posso tentar fazê-lo também às terças e quartas. Esse tipo de conduta decorre da absoluta certeza de que, no campo das probabilidades, a possibilidade de ser apanhado e, sendo, de ser punido são ínfimas, para não dizer nulas. O Estado brasileiro é omisso tanto para punir quanto para assegurar aos seus cidadãos direitos constitucionais mínimos, como saúde, segurança, educação. Algumas instituições no Brasil são exacerbadamente corporativistas e estão mais preocupadas com assuntos, interesses e prioridades internas do que com suas obrigações perante a sociedade. Somam-se a isso a morosidade da Justiça e as infinitas possibilidades recursais, que impedem a responsabilização efetiva de agentes públicos e privados envolvidos direta ou indiretamente nos atos que culminam em tragédias e em danos à coletividade.

macellus ferreira pinto

                                               Marcellus almoçando no Senado norte-americano com o Senador Bill Sarpallius. Foto: Acervo pessoal

N – No ano passado, o Museu Nacional, onde se guardavam relíquias valiosíssimas donosso passado, foi inteiramente destruído pelo fogo. A gestão da instituição foi transferida da União para a Universidade Federal do Rio de Janeiro e nenhuma dessas entidades públicas foi punida ou pelo menos cobrada pelo abandono que causou a catástrofe. Qual delas poderia ter respondido criminalmente pelo descaso e por que isso não foi feito?

M – Em regra, a responsabilização criminal recai sobre a pessoa física que, ao se omitir, ou agir de forma intencional, ou com negligência, imprudência ou imperícia, dá causa a tragédias como a do Museu Nacional. O referido acontecimento demonstra o pleno descaso com a memória do País. E não se está aqui a tratar de um mero descaso, mas sim um descaso qualificado pela conduta criminosa daqueles que têm o dever legal de zelar pelo patrimônio cultural do Brasil. Não há justificativa plausível para um evento como esse, falta de recursos, de pessoal, de estrutura, enfim, nada justifica o incêndio e a perda do patrimônio do museu. Nesse contexto, tanto os gestores ligados à Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) quanto os agentes públicos vinculados ao Ministério da Educação deveriam ser chamados a se explicar perante a Justiça Criminal. No caso do Museu Nacional, cabe ao Ministério Público Federal a curadoria do patrimônio público, sendo o MPF o responsável por promover a investigação e a eventual reparação criminal dos envolvidos.

Para ouvir entrevista de Marcellus Ferreira Pinto no Estadão Notícias clique aqui e, em seguida, no player

 

 

N – Em 2015, a represa de rejeitos da mina de ferro da Samarco em Mariana, na região histórica de Minas Gerais, produziu um desastre ambiental inusitado, que provocou a morte de um dos rios mais importantes do Estado, o Rio Doce. No entanto, nenhum executivo da empresa proprietária foi apenado, nenhuma indenização e nenhuma multa foram pagas, apesar do grande clamor internacional a respeito. É possível encontrar uma explicação razoável para isso?

M – Não há explicação razoável para isso! Após a tragédia de Mariana foi constituída a Fundação Renova, uma das fundações mais capitalizadas do mundo, que recebeu aportes financeiros vultosos da Vale, da Samarco e da BHP Billiton, sócias naquela atividade de mineração. A referida fundação tem curadoria do Ministério Público Federal e seus gastos são auditados pelo Tribunal de Contas da União. Na catástrofe de Mariana, a decantada desculpa da falta de recursos chega a ser um acinte à sociedade, especialmente aos envolvidos. Aliás, a obrigação de reparar os danos causados foi expressamente consignada num Termo de Transação e Ajustamento de Conduta com o Ministério Público Federal. Entretanto, após a investigação de Mariana, a Polícia Federal pediu o indiciamento do engenheiro responsável pela barragem de Fundão, mas o Ministério Público promoveu o arquivamento do inquérito. Como já era de esperar, o mesmo engenheiro envolvido na tragédia de Mariana foi promovido para a condução dos trabalhos em Brumadinho, e o resultado está aí nos jornais e na TV. Numa analogia, o que causa espanto é que qualquer cidadão comum, ao pleitear uma vaga de emprego, terá seu histórico profissional escrutinado pelo pretenso contratante, de forma que um candidato indiciado pela prática de um crime pela Polícia Federal dificilmente seria contratado para qualquer função, especialmente se o crime que originou o indiciamento for correlato com a função pleiteada. No caso da Vale, a lógica parece ser a inversa, após a tragédia de Mariana, o engenheiro indiciado como responsável foi para Brumadinho.

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N – Até que ponto é verdadeira a afirmação de que a legislação ambiental brasileira é adequada? Se isso é verdadeiro, por que, então, a tragédia de Mariana foi repetida três anos e meio depois em Brumadinho numa represa da Vale, uma das empresas proprietárias da Samarco?

M – No Brasil, em matéria de Direito Ambiental, o crime compensa! Se a legislação ambiental brasileira fosse adequada, tragédias como a de Mariana jamais aconteceriam, quiçá se repetiriam em proporções ainda mais devastadoras, como aconteceu em Brumadinho. A adequação da legislação ambiental no Brasil é apenas aparente. A lei é muito rígida em determinados aspectos e frouxa em outros. As multas eventualmente aplicadas, quando pagas, nem de longe abalam o desempenho financeiro das empresas. O ponto mais sensível é que a lei outorga às empresas que atuam no setor de mineração o poder de autofiscalização. Esse é o lado frouxo da lei, pois as empresas sabem que o Estado é incapaz de atuar de forma efetiva na fiscalização da atividade de mineração. Na prática, é a própria mineradora que atesta a regularidade de suas atividades. Com isso, o lado rígido da lei, que prevê multas, sanções, cassação de licenças e até prisão em determinados casos, perde sua eficácia diante da inércia do Estado na fiscalização. Outro aspecto importante é que o Direito, por si só, não cria padrões comportamentais, ele os regulamenta. Ou seja, não adiantam as sanções previstas em lei se as empresas que exercem a atividade não incorporarem a cultura da prevenção e da valorização do meio ambiente e da vida humana em suas práticas operacionais.

Para ver entrevista de Marcellus sobre Brumadinho na TV BandNews  clique aqui

Marcellus lembra que a leniência no Brasil é tão grande que a Vale pôs para gerir Brumadinho responsável pelo desastre de Mariana. Foto: Acervo pessoal

N – Por que ocorrências desse tipo acontecem amiúde no Brasil, mas no resto do mundo episódios dessa gravidade não se repetem com a mesma frequência?

M – Porque no resto do mundo as empresas não atuam em regime de monopólio, como é o caso da Vale no Brasil. A Vale dita os rumos nos setores de mineração e de ferrovias, esse modelo não funciona em nenhuma outra economia do mundo. Em determinados países líderes mundiais em mineração, como o Canadá, diversas empresas dividem o mercado. E mais, naquele país a fiscalização de uma determinada empresa pode ser feita pela sua concorrente. O governo federal precisa debater, urgentemente, a quebra do monopólio da Vale, a sociedade brasileira não pode mais se curvar, de joelhos, às pretensões econômicas de uma única empresa. O Brasil precisa escancarar suas portas de forma a permitir a entrada de outros gigantes da mineração, que atuam em países como Canadá, Estados Unidos, Rússia, Austrália, China, etc. A concorrência será muito benéfica para o setor, pois permitirá a adoção de modelos industriais já testados em diversos países, e isso será bom até para a Vale, que será forçada a se ajustar a novos parâmetros de governança corporativa e prevenção de acidentes.

 

N – Quais são, a seu ver, as principais causas da negligência que provocam essas monstruosidades contra a natureza, os seres humanos e os animais e da impunidade que impede que os responsáveis por elas respondam com penas duras à altura dos crimes, e na justa forma da lei?

A meu ver, a convicção da impunidade é a causa primária de todas essas tragédias. O agente, seja ele público ou privado, tem a certeza de que não será fiscalizado, e ainda que o seja não será punido nos termos mais rigorosos da lei. Das 19 multas aplicadas à Vale nos últimos dez anos só no Espírito Santo, a empresa não pagou nenhuma, recorreu de todas e tem grandes chances de anular uma a uma no Judiciário. Em Minas Gerais, é comum ouvir no meio jurídico que não compensa litigar contra a Vale, pois o Judiciário mineiro é o “escritório de advocacia” da empresa, tamanha a indulgência com que julga as causas de interesse da companhia. Esse tipo de comentário é uma afronta ao Poder Judiciário! Tragédias de tamanha magnitude, quando não repreendidas proporcionalmente ao dano causado à sociedade, deixam como legado o sentimento de que o crime compensa.

Para ver entrevista de Marcellus na GloboNews sobre Brumadinho clique aqui

 

 

N – O incêndio que matou dez adolescentes da base do Flamengo, no CT do clube na Vargem Grande, revelou uma anomalia absurda em relação a casos do gênero. Como o clube conseguiu manter funcionando um próprio com prática esportiva e alojamentos sem alvará? Por que a prefeitura do Rio alega que não interditou o imóvel irregular por não lhe ser permitido fazê-lo legalmente? Como se explica que o Corpo de Bombeiros não tenha incluído os contêineres que serviam de alojamento na vistoria que fez no conjunto do CT?

 

M – O Brasil não precisa de leis, precisa de atitude! O mero debate sobre o tema em questão demonstra a completa degeneração da nossa sociedade. O que esperar de um clube que não zela pelo seu principal ativo, os atletas? São dois absurdos que precisam ser investigados. De um lado, o Flamengo, que optou por hospedar seus atletas juvenis numa espécie de puxadinho construído com sobras de contêineres. Ao que me consta, o orçamento do clube não está comprometido de forma a impedir o investimento em condições elementares de segurança. De outro, os órgãos de controle do poder público, especialmente a prefeitura e o Corpo de Bombeiros. Frise-se que não estamos a falar apenas de transgressões com reflexos criminais, mas também de irregularidades administrativas, cíveis, trabalhistas e até fiscais.

 

N –A legislação brasileira não contempla punições criminais para responsáveis pela administração das barragens das mineradoras e dos centros de treinamento de clubes de futebol (houve um incêndio três dias depois do fogo no Flamengo nas dependências do Bangu) pela mortandade em série provocada pela incúria dos proprietários e executivos responsáveis por essas instalações?

M – O criminoso é a criança mimada do Direito Penal brasileiro. A Constituição federal brasileira é uma das mais garantistas do mundo. O sistema de direitos e garantias constitucionais fundamentais representa uma blindagem de difícil rompimento. Ora, se alguém morreu de morte não natural, como nos acidentes em comento, a lei penal precisa incidir de forma contundente, não apenas para repreender a conduta criminosa, como para servir de exemplo pedagógico para evitar novas ocorrências. Frise-se que a conduta é que dá causa. E mais, é preciso substituir a cultura da reparação pela da prevenção. Quanto vale um pai? Uma mãe? Um filho? Um ente querido morto numa tragédia produto da negligência? Na maioria das vezes as indenizações pecuniárias nem sequer restabelecem a condição financeira e material anterior ao dano causado. Não adianta tentar remediar aquilo que é irremediável, como a perda da vida humana ou o dano ao meio ambiente.

 

Para ver entrevista de Marcellus sobre Direito Eleitoral no Bom Dia ES clique aqui


N – Quais são as responsabilidades legais a serem cobradas pela Justiça das empresas contratadas para executarem as obras nas barragens e em conjuntos esportivos de clubes de futebol, e também dos especialistas convocados a atestar o funcionamento seguro da prática de atividades nesses locais?

 

M – Em matéria de Direito Ambiental, a responsabilização das empresas ocorre a partir de uma análise objetiva, ou seja, basta a comprovação da conduta, do dano e do nexo de causalidade entre ambas. Nesse ponto, as empresas envolvidas, tanto direta quanto indiretamente, podem ser responsabilizadas solidariamente. Já em relação aos especialistas, a responsabilidade é subjetiva, ou seja, deverá ser apurado se houve ação ou omissão, e se o agente agiu com negligência, imprudência, imperícia ou até mesmo com alguma espécie de dolo, ainda que eventual. No caso dos engenheiros, é plausível que tenham de responder perante o Conselho Regional de Engenharia e Agronomia (Crea), podendo, a depender do resultado da apuração, até mesmo perder seus registros.

N – O presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Dias Toffoli, agiu com correção a receber unilateralmente o diretor jurídico da Vale, sem ouvir suas vítimas, e ainda aconselhá-lo a entrar em acordo com estas para evitar a “judicialização” do caso? Neste caso, para que serviria, então, a Justiça nesta nossa democracia, que assim se demonstra de fancaria?

M – Creio que o ministro Toffoli agiu corretamente. A melhor demanda jurídica é aquela que é evitada. Aliás, dada a morosidade da Justiça e de seus ritos formais, o Poder Judiciário é a melhor trincheira para aqueles que desejam se esquivar de suas obrigações, e essa não é uma questão a ser enfrentada e resolvida apenas pelo Judiciário, mas também pelo Legislativo. Ao receber o diretor jurídico da Vale, o ministro agiu em compasso com sua atribuição institucional, sendo crível que agiria de igual forma com os advogados representantes das vítimas. Do contrário, poderia aparentar uma parcialidade incompatível com sua função de ministro do STF.

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“Judiciário mineiro é ‘escritório de advocacia’ da Vale, tamanha a indulgência com que julga as causas de interesse da companhia”, diz Marcellus 

Link da notícia no Estadão: clique aqui.

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